quarta-feira, 18 de agosto de 2010

IV - O Coração e o Relógio


O cigarro já tinha acabado há tempos, mas eu ainda estava fazendo todo aquele sacrifício de usar perfumes e spray para tirá-lo de mim. Não havia nenhuma parte do meu rosto que não estivesse maquiada, assim como boa parte do meu corpo estava sentindo aquela compressão de uma cinta que promete emagrecer, atenuar curvas e todas essas coisas milagrosas e instantâneas. Ah, maldita idade em que ainda acreditamos que temos alguma coisa pra provar pras outras pessoas! Eu tinha um encontro naquela noite, mas não era um encontro qualquer – era com o Dan. Não era também um encontro convencional, até porque meu amigo homossexual que me ajudava com a maquiagem – meu blush, sem a ajuda do André, era sempre um exagero circense – estaria conosco.

Um amigo do André nos levou de carro até a estação de metrô na qual combinamos de pegar o Dan. Ele não foi muito pontual, mas eu também não havia sido muito precisa quanto a hora em que deveríamos nos ver. Estar no mesmo carro que o Dan podia ter sido como Werther e Charlotte dividindo a mesma carruagem, mas me surgiu uma timidez que fez com que eu nem conseguisse olhá-lo como deveria. Não obstante, consegui prestar atenção o bastante pra notar o quão convidativa era a boca dele, da qual saía um sotaque paranaense bonito e categórico. Naquele momento ele tinha me vencido em desenvoltura.

Cada palavra do Dan me dava alguma vontade de me desvencilhar da timidez, mas os dez meses que eu tinha passado mantendo apenas relações superficiais, sem praticar aquele jogo de conquista ou sem precisar parecer interessante pra alguém para ter sexo, me faziam parecer completamente desastrada e inexperiente. A minha idéia pra finalmente conseguir me soltar era me apoiar nas minhas únicas duas muletas: álcool e cocaína.  Como tínhamos comprado algumas coisas pra beber no meio do caminho, me faltava ir atrás da droga.  Sair atrás de entorpecente no meio de um encontro poderia garantir que tudo se perdesse, mas não era um encontro com qualquer pessoa, era alguém que se divertia com o fato de eu não ser lá “flor que se cheire”. Deixei o Dan em boa companhia – ele ficou conversando com o André  – enquanto eu “ia ali”.

Na esquina da casa do André era possível identificar o ponto dos travestis, com os quais eu sempre conversei de forma natural, talvez não tão natural assim se considerar o quanto costumava me esforçar pra usar os termos que eles preferiam - tento seguir a regra básica da comunicação na qual o entendimento é maior quando o emissor se adapta às falas correntes do meio social no qual está inserido o receptor. O travesti no qual eu sempre confiava para me acompanhar na empreitada de comprar a cocaína era robusto, alto, negro, cabelos completamente raspados e sem artificialidades que tentassem forçar fenotipicamente uma feminilidade. Usando uma boina jeans e uma micro-saia de couro, lá estava a Carmela:
– Gata, é o de sempre?
– Por enquanto é só isso, mô! – disse isso emendando com uma risada discreta e polida na tentativa de evidenciar ou forçar algum bom humor.
Enquanto a Carmela ia comigo até o ponto de venda mais próximo, fomos conversando enquanto eu me esforçava para que as minhas curiosidades parecessem mais um fruto da suposta intimidade que tínhamos do que uma análise sociológica. No caminho, sem a mínima vontade de disfarçar o espanto, Carmela me falava sobre uma amiga sua que havia deixado a prostituição pra sentar no banco da igreja:
– Eu num sei o que você pensa, gata, mas a pessoa não pode largar tudo só porque tomou uma garrafa na cabeça. Num dá pra pegar e fingir que foi convertida na garrafada. O nome disso é covardia, não Jesus.
– Bom, eu já larguei várias coisas por muito menos. Você também já foi agredida, mona? – disse isso cabisbaixa, fazendo uma clara referência ao fato de eu ter o hábito de me deprimir com tudo que começo a fazer e sentir que preciso largar aquilo pra melhorar da depressão.
– Nunca, graças a Deus. Já fiz programa com homem violento, mas num deu nada. Uma vez quiseram me matar, mas eu escapei por Deus.
– Pensei que você não fosse religiosa.
A minha companheira naquelas ruas escuras deve ter acreditado que a última frase era fruto de algum eventual preconceito, de alguma crença de que ela, por se travestir, não devesse ter alguma religiosidade. Infelizmente não notei isso na hora, quando um silêncio reinou entre nós, pois se tivesse notado teria explicado que a desvinculei de religião pela forma cômica como ela contou sobre a conversão da amiga. Posso não ter imaginado a causa do silêncio, mas senti algum desconforto quando ele surgiu e tentei manter a conversa desviando o assunto pro que nos fazia estar ali:
– Na última vez me deram algo que mais parecia um talco. Eles devem achar que já estou viciada. Vê se você consegue uma branquinha boa.

As conversas e cordialidades foram interrompidas tão logo chegamos ao ponto de venda, a famosa “boca”, um lugar perto de uma rua sem saída e, ao que parecia à primeira vista, sem nenhuma perspectiva de nada. O processo era rápido e consistia em a Carmela dar o dinheiro e pegar as cápsulas, que eram sempre mantidas na mão de um rapaz que ficava posicionado estrategicamente em uma calçada. Nunca cheguei a pensar que fosse ele o traficante, afinal era um garoto qualquer em um ponto de mediocridade – não tinha a aparência necessária para que preconceituosamente fosse rotulado como um “bom caráter”, mas também não tinha a obscuridade necessária para um “mau caráter”, talvez o garoto fosse só um Macunaíma, um personagem sem caráter algum.

A Carmela me acompanhava por um preço baixo, que se evidenciava na última esquina pela qual passávamos no retorno: ela só queria poder cheirar um pouco também, e eu nunca neguei. Meu único problema em ficar ao lado de um travesti que cheirava cocaína no meio da rua é que eu ainda tinha algum medo da polícia, ao passo que ela parecia nunca se importar com isso:
– Ah, gata, nem liga! Tem polícia que passa pela gente mandando tomar cuidado com onde a gente anda cheirando, que agora colocaram essas câmeras aí pelas ruas. 

Alguns pontos de São Paulo tinham câmeras nas ruas desde o ano passado objetivando criar uma forma mais eficaz de combate ao crime. A idéia era razoavelmente boa, mas extremamente ineficaz na medida em que a polícia, responsável pela atuação direta nesse combate, faz vista grossa e aconselha travestis a cheirar apenas em pontos estratégicos. Naquele momento uma onda imensa de hipocrisia me tomou, até que uma parte da minha consciência percebeu que eu não podia condenar tanto o crime, a vista grossa e todos esses males enquanto eu continuasse tirando algum dinheiro do bolso pra financiar tudo isso, e essa mesma parte do cérebro responsável pela consciência me fez imaginar que eu merecia ser pega nessa hora e sofrer com as medidas punitivas. Como a hipocrisia sempre vence, reprimi meus pensamentos que me julgavam e menti pra mim mesma alegando ser só era mais um fruto do meio e das circunstâncias.

Compulsão sexual, compulsão por comida, vontade de cheirar um Maracanã de cocaína... É isso que a sociedade contemporânea e imediatista faz de nós. Por mais que a gente se sinta muito especial aos vinte anos, fazemos como todas as outras pessoas dentro de uma sociedade inteira que volatiliza relações e vai a festas pra esquecer do amor e da política. Achamos sempre que nossos problemas são únicos, maiores, mais improváveis; mas no fundo somos todos iguais: grandes máquinas de comer, beber e foder. Não é à toa que Huxley visiona um futuro em que o sexo deixa de ser tão interessante e as pessoas, robotizadas, só têm alguma felicidade usando drogas.

Voltei pra casa do André com um sorriso triunfante, enquanto o olhar de desprezo dele me indicava que ele sabia o que eu trazia escondido no decote. Tirei uma cápsula do sutiã e coloquei na mesa, bem ao lado de onde o meu parceiro da noite estava sentado. Diferente do André, a reação dele foi bem humorada. A risada do Dan, que eu conheci perfeitamente naquela altura, era inquestionavelmente espontânea, intensa e até certo ponto contagiante. Foi com essa risada, com a boca atraente e com o sotaque imponente que fiquei acompanhada quando o dono da casa anunciou que dormiria.

Sozinha com o Dan, sugeri que continuássemos bebendo, enquanto eu habilidosamente fazia algumas carreirinhas em cima da mesa. Nos divertíamos com aquele ritual extremamente despreocupado e juvenil. Dopada, bêbada e risonha, fui absorvida pelos lábios dele quando ele finalmente quis tomar posse de mim, que desde o primeiro momento já estava entregue a ele. Flutuava, vibrava e me sentia arrepiada com um beijo, como não me sentia havia tempos. Eu me perdia, explorando todos os sentidos que podia. Fiz com que nos jogássemos em um colchão estrategicamente posto na sala, mas a iniciativa de se aventurar por baixo do meu vestido foi dele. Passei a minha melhor noite sem sono até aquele dia.

Pouco depois de o sol sair, eu precisava ir embora pro meu almoço em família, a tradição dos domingos da qual eu não abria mão se desnecessário. Mais tarde vieram as mensagens de celular nas quais o André demonstrava incômodo por eu usar cocaína na casa dele mais uma vez. Por mais que o André ainda fosse o melhor amigo homossexual que qualquer mulher pudesse ter, todas as reclamações e coisas mundanas tinham se tornado meras trivialidades depois da minha noite com o Dan. Tentei me redimir com o André e prometer que não usaria mais nenhuma droga dentro da casa dele, promessa que realmente cumpri, mesmo quando começamos a morar juntos, uma semana depois. Foi também nessa semana seguinte que o Dan e eu resolvemos começar a namorar.

Eu não sabia se estava pronta pra dividir emoções e todas essas coisas relativas à vida com alguém. Eu não tinha nada pra dividir, exceto minha instabilidade emocional e social – devia ser a segunda vez que eu encarava uma mudança em três meses, já tinha até reduzido abruptamente meu número de livros e jogado algumas lembranças fora pra dinamizar esse processo sempre que fosse necessário. De fato talvez não fosse a hora mais certa pra se estabelecer algum compromisso emocional com alguém, sobretudo um que começava tão rápido quanto o de Michael Corleone na Sicília.  Talvez, também, o coração não tivesse assim tanta hora. 

15 comentários:

  1. *----------*, ta muito lindo meu amor <3

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  2. Finalmente. Tirando as referências e citações. Mas ótimo.

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  3. Fico imaginando vc escrevendo esses textos na sala e morrendo de medo de mostrar pra todo mundo achando que tá uma merda, mas como boa leolina, com uma pontinha de orgulho da sua criação.
    *Continua assim, escrevendo solta como se estivesse batendo um papo de boteco.

    Boa Sorte! s2

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  4. Você escreve demais Mandy!

    Consigo me sentir você nas atitudes descritas aí em cima... eu tenho mania de ler as coisas interpretando... Mas só é possível se for bem escrito +_+ Te amo

    Beijinhos do Gah
    @gahtaverna on twitter

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  5. Adoro a maneira como você escreve,consigo visualizar claramente a história e a paixão nela contida.
    Constantemente faço uso de bebida para vencer a minha timidez também,é incrível como funciona.
    É bom ter alguém que se preocupe conosco e não nos deixe passar dos limites,mas às vezes é ainda melhor quando não nos julgam e simplesmente juntam-se a nós nas nossas extravagâncias.Tem horas que o "ruim" nos salva de algo pior.
    Quanto à hora certa,acho que tem mais a ver com uma condição interna,mesmo quanto tudo ao redor está um caos..acho que isso pode até fortalecer a relação.Algo dentro de nós avisa se está na hora certa.Bom,de qualquer forma sou sempre a favor de relacionamentos e do amor,sou uma romântica incorrigível e posso me dar mal mil vezes,não vou me arrepender.Afinal,como já diria Dostoievski : "Um momento inteiro de felicidade?Não seria isso o bastante para inundar uma vida?"

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  6. Adoro a maneira como você escreve,consigo visualizar claramente a história e a paixão nela contida.
    Constantemente faço uso de bebida para vencer a minha timidez também,é incrível como funciona.
    É bom ter alguém que se preocupe conosco e não nos deixe passar dos limites,mas às vezes é ainda melhor quando não nos julgam e simplesmente juntam-se a nós nas nossas extravagâncias.Tem horas que o "ruim" nos salva de algo pior.
    Quanto à hora certa,acho que tem mais a ver com uma condição interna,mesmo quanto tudo ao redor está um caos..acho que isso pode até fortalecer a relação.Algo dentro de nós avisa se está na hora certa.Bom,de qualquer forma sou sempre a favor de relacionamentos e do amor,sou uma romântica incorrigível e posso me dar mal mil vezes,não vou me arrepender.Afinal,como já diria Dostoievski : "Um momento inteiro de felicidade?Não seria isso o bastante para inundar uma vida?"

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  7. Hey hey hey!

    O recomeço do começo é sempre complicado e explêndido, já que quebrar o gelo dos anos, meses, dias é sempre especial, de qualquer forma.
    Ache sua linguagem e grafite no papel as ideias.

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  8. Amei o texto mandic... você poderia escrever um livro...eu compraria! hauhauha
    Beijos.
    Nat.

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  9. você escreve bem, invista nisso
    seu texto ficou muito bom!

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  10. a putaria foi algo que sempre impressionou , ebrios , dementes,pintores e poetas, acho que porque em vida, a maioria, só arrumava grana para ir por lá,mas voce escreve com estilo e bem.
    Num para não

    Kiss

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  11. oi, to comentando de novo, voce escreve bem, a tematica mereetristica é barra, mas tem estilo .
    Não interrompe este teu lado Honey

    bjo

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  12. Também adorei a volta da nossa Bukowski predileta, ela tem uma honestidade rara, e a habilidade pra descrever o que quer, e um gosto pelos detalhes... curto pra caramba, por favor, continue?

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  13. Esse teu texto me fez lembrar do tempo que morei em POA. Apesar de não usar a tal da 'farinha de mandioca', vivenciei bem de perto a vida de travestis, drag queens, gigolôs e cafetões... É uma realidade muito impactante e tênue.

    ps. assim como alguns já comentaram, vc realmente expõe suas idéias de uma forma que a leitura fica bastante visual.

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  14. A forma como você escreve e descreve cada momento é impressionante. Parece que as palavras possuem vida, e remete-nos a imaginar toda a cena que foi descrita. Enfim, o texto é muito bom, muito bem descrito. Não é um texto confuso, ou cansativo. Mas é algo interessante, que prende a atenção, e em cada palavra, eu consigo ver uma pontinha daquilo que você sente, daquilo que você pensa. Isso é algo muito bom, pois em muitos textos que leio, vejo apenas palavras jogadas em alguns parágrafos monótonos e frios. Porém, em suas palavras, vejo uma grande sinceridade, como a expressão de uma alma. Melhor, não são palavras, mas é a sua própria alma dialogando com o leitor.
    Parabéns!

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