segunda-feira, 16 de novembro de 2009

II - Os Tais Caminhos da Liberdade

Os nome dos personagens do texto anterior foram alterados para os nomes reais. 
O final fictício foi retirado pra que coubesse continuação real.

  - Agora dá pra falar o que tá fazendo aqui?
  - É que essa é a única sacada da cidade em que eu posso vomitar e ouvir blues.
  O Rodrigo só deu aquela velha risada rápida e analasada – eu, que já o conhecia, sabia que isso significava que eu podia ficar. Naquela época era minha única amizade completamente assexuada, o que sem dúvida representava um refúgio. Finalmente ele sentou comigo no chão molhado pela tempestade. A gente ficou fumando e tomando vinho barato enquanto víamos a água caindo rapidamente, tão apressada que era como se tivesse alguma obrigação maior do que fazer parte do nosso cenário.

  Eu me empolgava mesmo com esse tal de Felipe Cazaux – proeza que o Rodrigo tinha me mostrado depois de ter “caçado” por aí – que tocava na nossa pseudo-vitrola. Ele sempre achava os melhores álbuns do Tom Waits, os melhores cantores de blues, os melhores shows da cidade e as melhores conversas com reticências. Era sempre o “pega, ouve” que mudava a minha vida por um momento.

  Sem muita pressão, fui logo dizendo pro meu amigo o que me fazia fugir pra lá. Ele não entendia bem como eu podia ter recebido carta branca do meu pai pra largar a faculdade e viajar pelo mundo e, ainda assim, continuar naquela cidade, que desapontava Drummond por ser só grande, não ter absolutamente nada de pequeno. De repente a gente começou a ter um dos nossos devaneios antropológicos. Eu falava dos livros do Sartre sobre liberdade e emendava dizendo que não só não entendíamos esse conceito de liberdade como ainda ficávamos assustados com ele – talvez assustados por não entender. “Os seres humanos têm alguma espécie de interesse em reclamar da falta da liberdade, posto que tomando posse dela, estagnam”, dizia eu. Ele achava que eu estava só usando minha covardia como uma regra geral para o mundo e pautando tudo isso em um discurso literário. Talvez fosse mesmo.

  Ele insistia pra que eu me metesse a fazer uns cursos relacionados à sétima arte e encarnasse uma espécie de Che Guevara viajando pela América do Sul com uma mochila nas costas. Era tudo o que eu queria, além de continuar tentando publicar alguma coisa sem precisar vender a minha alma pra isso – ainda me recusava a transar com os editores e roteiristas cinquentões. A indignação do Rodrigo era por eu ser como o Bukowski dizia: tinha a vontade e a necessidade de viver, mas me faltava a habilidade. Ele acreditava que minha falta de habilidade se baseava no fato de eu não conseguir me ver sem tv a cabo, colchão de molas e Wi-Fi. Eu só desejava que ele estivesse profundamente errado.

  Nós tínhamos bebido muito e discursado por horas todas aquelas coisas que só nós entendíamos. Eu não sabia de onde ele tirava tanta resistência pra bebida, mas ele realmente não passou mal – diferente de mim. Dormi na casa dele, amassada em um sofá de dois lugares e acordando pontualmente de meia em meia hora pra passar mal.

  No dia seguinte acabei acordando umas 11:30 horas com o Rodrigo fazendo barulho enquanto ouvia Led Zeppelin. Ele estava todo empolgado me chamava pra ir no tal Cemitério de Automóveis: “Você vai adorar o lugar! Dizem que tem um no Paraná e que botaram um pôster do Kerouac na parede de lá”. Eu ainda não raciocinava direito por causa da dor de cabeça horrível que tava sentindo, mas não perderia de ver um lugar com um possível pôster do Kerouac nunca.

  Fui pra casa tentar escrever um pouco durante a tarde e poder me arrumar, colocar um daqueles vestidos dos anos 60 que eu usava. Lá pelas 20:00 horas meu amigo já estava na porta de casa com dois energéticos na mão e aqueles terríveis cigarros sem filtro que ele consumia com um certo orgulho. Aceitei os energéticos, e até os cigarros.

  Sentamos em um lugar qualquer no Cemitério de Automóveis. O Rodrigo logo saiu de perto de mim ao notar que meu decote recebia olhares. Então só coube a mim começar a retribuir os olhares de um rapaz com um visual meio anos 70 – o fato de ele estar visualmente uma década à minha frente já indicava alguma coisa boa. Ele acabou me trazendo uma cerveja que eu não conhecia e sentando ao meu lado. Por mais discrepante que fosse, eu não me saía tão bem assim nesse tipo de situação – só cabia a mim intercalar as conversas com todas aquelas minhas usuais risadinhas tímidas.
 
  O rapaz das costeletas, o Daniel, era artista plástico, tinha 30 anos e conseguiu roubar a minha timidez quando começou a falar de artes. Eu não entendia muita coisa de artes plásticas – até por ser um longo estudo no qual mais me interessava arte moderna mesmo –, mas eu adorava falar do cinema, da fotografia pra sétima arte e de tudo que eu queria ver na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Acabamos encontrando um ponto intermediário: Godard, em cuja obra cinema e pintura se entrelaçam.

  O Rodrigo e eu tivemos que ir embora logo, afinal ele tinha conseguido deixar um daqueles caras fortes que usam jaqueta de couro com raiva quando tentou ser cordial com a namorada dele, uma garota excessivamente magra que tinha um penteado de Marilyn Monroe. Saímos rápido, mas consegui tempo o suficiente pra deixar ao menos um telefone com o Daniel.

  Durante uma semana inteira o Daniel e eu conversamos sobre qualquer tipo de assunto. Eu estava completamente extasiada com a idéia de ele ser 11 anos mais velho e de ter sempre um discurso contagiante, persuasivo e empolgante. Era difícil não me sentir envolvida pelo conjunto de palavras que ele lançava. Dessa sintonia ideológica surgiu a melhor proposta que eu poderia receber naquele momento: ele queria que fôssemos uma espécie de Sartre e Beauvoir da pós-modernidade, que mantivéssemos uma espécie de relacionamento aberto em que imperaria o hedonismo e o companheirismo. Depois de alguma bebida, ele falava de modo animado sobre sexo, arte e a intersecção dos dois: “O melhor é gostar de arte, todas as artes; e de sexo – falar sobre tudo isso, fazer tudo isso. Não abrir mão da arte, nem do sexo – nem separar os dois”. Eu que tava achando tudo aquilo interessantíssimo, acabei aceitando a idéia.

  Naquela noite tinha que ir ao apartamento do Jota encontrar os batatibhas, me entorpecer um pouco e contar toda essa história de relacionamento aberto pra eles. Por sorte cheguei antes de todo mundo começar a alcançar o pico e não conseguir mais entender nada do que eu dizia. O Luann e o Jota, que naquela altura já haviam se tornado meus grandes amigos ali, tentaram me dissuadir de tudo isso – todo mundo já sabia que eu me envolvia sentimentalmente de forma extremamente rápida, o que seria péssimo em uma relação onde não cabia nada parecido com isso. Não obstante todos os protestos dos meus amigos, na noite seguinte eu já estava tomando vinho e fumando no quarto do Daniel.

  Acabei passando a madrugada inteira fazendo sexo e arte com meu Jean-Paul Sartre. Algumas coisas no sexo com ele evidenciavam o quão interessantes homens mais velhos podem ser na cama. Há tempos não me surpreendia sexualmente de um modo tão incrível. O jeito como ele me dominava e sabia encontrar os pontos exatos pra me fazer enlouquecer, logo em uma primeira vez, só podiam ser fruto da experiência que os anos trazem. Ele conseguia ser afetuoso depois do sexo, coisa que homens mais novos sempre esqueciam de fazer.
 
  Cheguei em casa quase no fim da tarde seguinte. Guardava no corpo as tão atraentes marcas de um sexo bem feito. Chamei os batatibhas e o Rodrigo em casa pra dividir as minhas aventuras da noite anterior. O Jota emitia onomatopéias curtas e entrava em um silêncio profundo, que era a sua forma de demonstrar preocupação. O Luann, por outro lado, era mais direito e passional: demonstrava sua exacerbação por meio de discursos inflamados. O Rodrigo era o único que tinha algum omitismo com aquela história toda: ele discursava sobre o quão bom era eu estar vivendo algo real de novo, algo que poderia me fazer superar o Gabbe.

  O Daniel e eu ainda tivemos alguns momentos de “fazer samba e amor até mais tarde”, mas toda aquela história acabou logo – pra minha sorte, antes de eu me envolver sentimentalmente. Acabou quando o Daniel soube que queria mesmo levar um relacionamento fechado, nos moldes desses impostos pela sociedade, e tinha encontrado alguém com predisposição pra isso, alguém que certamente alterava o ritmo do seu coração – coisa que eu nunca poderia fazer, afinal naquela altura ele já sabia de mim o suficiente pra nunca se apaixonar.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

I - Garrafas, Bitucas e Cacos de Coração

  Nunca tive muita habilidade com isso de viver. É possível que ninguém tenha habilidade com isso, mas eu sempre tive menos que todos. Passei pela adolescência do jeito que os psicanalistas aplaudiriam: questionei tudo e todos, pus em xeque anos de educação. O problema começou depois.

  Eu era uma mistura de dois personagens literários, uma espécie de Dorian Gray com Werther. Cheguei a atirar na minha própria cabeça depois de uma dessas comuns desilusões que se tem com alguém com quem você transa por anos – dizem que a gente sempre muda depois das decepções. O tiro que eu dava na minha própria cabeça era o hedonismo.

  Meus acompanhantes da época me encaravam como a própria inventora dos prazeres. Eu sempre bebia, usava alguma droga e filosofava sobre o amor livre até conseguir levar todos, ao mesmo tempo, pra uma cama pequena de um motel na esquina de uma rua paulista qualquer ou pra um desses bordéis com luzes e sons poluentes.

  No fundo eu estava sempre achando minha vida medíocre. Acabei entrando nessa história de cursar uma faculdade e dormir todo dia em casa, quando na verdade eu só queria estar com uma mochila nas costas experimentando todas as drogas e pessoas de todos os lugares do mundo pelos quais passasse.

  Queria largar a faculdade, mas não tinha coragem o suficiente pra largar essa minha rebeldia sustentada pelo meu pai. Eu era só mais uma dessas adolescentes de classe média que pensam saber alguma coisa, que pensam em fazer revolução sendo incapazes de trabalhar pelos próprios cigarros.

  Na época, eu ainda tinha uma transa fixa com meu ex-namorado, Don. Talvez a transa tenha acabado depois de eu sofrer um aborto espontâneo. Era chocante pra dois jovens. Foi nessa época que ele achou que me faria bem conhecer umas pessoas novas.

 
  No começo de uma dessas estações, o Don me levou no velho apartamento de um amigo, um cara magrelo de personalidade imponente, o chamado Jota. O apartamento era cheio de referências à Islândia e sofás pretos de couro sintético. Os outros que conheci naquela noite eram tão peculiares quanto o anfitrião: Rique, o menino das roupas azuis e risadas convidativas, e Carol, a garota simpática que fez todo o esforço que pôde pra me enturmar de cara. Eles eram, naquela época, o que os beatniks foram nos anos 50: modernos, articulados, hedonistas e presos ao seu próprio mundo como forma de ruptura. Ao grupo se atribuía nomes bem humorados, como batatibhas, que eu nunca deixei de usar.

  Sentei em um desses sofás de couro sintético enquanto todos bebiam, riam e conversavam semi-nus. Fiquei surpreendentemente quieta, só escrevendo umas linhas ou rindo de alguma coisa. Esse pequeno desconforto passou logo que eu descobri que o Jota era fã de Tarkovsky. Deve ter sido nessa hora que me senti em casa. Comecei a oferecer cigarros.

  Passei a ir todos os dias naquele apartamento de encontros falantes, intelectuais e hedonistas. Fui conhecendo uns amigos desses meus neo-beatniks, que foram se tornando tão amigos quanto os primeiros. Conheci o Luann, um menino descarado e divertido, que me chamou atenção de imediato, pouco tempo antes de conhecer a garota à qual ele pertencia – talvez os humanos só se sinta livres quando presos sentimentalmente. A garota era a Bel, a mais equilibrada, com uma beleza tão inquestionável quanto a de uma boneca de porcelana. Formavam um casal tão vistoso que eu não conseguia deixar de tentar satisfazer meu voyeurismo.

  As reuniões se tornavam cada vez mais longas e numerosas. Eu conseguia sempre alcançar o pico que buscava – o Rique nunca contou de onde tirava drogas tão boas. Em cada reunião dessas de sofá as histórias de nossas vidas se misturavam mais. Alguns gostavam de perguntar e me ouvir contar do meu passado de ninfomaníaca:

  - Então quer mesmo que eu acredite que você, que chupava até taxista, cismou de se contentar só com vibrador? – perguntava o Rique.
  -  Eu ando com um certo nojo, é só isso. Não é que eu não goste mais de sexo, é só que ando com aversão às pessoas.

  A verdade é que talvez todo mundo já tivesse percebido que eu não estava mais tão viva. Talvez essa existência oscilando entre prazeres descontrolados e nojo fosse uma forma de tentar sufocar frustrações gerando sempre novas.

  Em um dos dias em que eu cheguei no apartamento depois dos outros, me deparei com todo mundo quase alcançando o pico sem mim. No canto da sala havia um cara que o Luann apresentou como sendo um amigo seu, a “carne nova”, seguindo as palavras dos meus amigos em pré-overdose. Ele, que era chamado de Gabbe, tinha cabelos longos e negros que se misturavam com um lenço que remetia a uma das correntes de rock nos anos 80; tinha uma beleza simples de ser entendida e marcante. Ele cheirava a Lucky Strike, cerveja e solidão.

  Mesmo agora, passado algum tempo, não consigo explicar muito bem tudo o que aconteceu quando conheci o Gabbe. Os sofás pretos, as pessoas jogadas pelo chão, a música alta e todo o resto já não passavam de um adereço ao redor dele, como se cada parágrafo da vida, assim como desse texto, tivessem servido apenas pra culminar naquele momento.

  Conversei com o Gabbe por longas horas naquela noite. À primeira vista, éramos diferentes; com gostos, idéias e vidas diferentes. Em todas as outras vistas também éramos diferentes, mas havia alguma coisa que se assemelhava muito. Não sei bem o que. Continuamos a conversa na cozinha da minha casa. Todos os meus desejos haviam aflorado com aquelas palavras dele e eu senti necessidade de novo de ter algo real e... animal. Dizer que queria algo mais “humano” poderia valer, mas não daria a dimensão do jeito que eu tomei posse dele e do jeito que puxei aqueles cabelos no melhor orgasmo que já tinha experimentado até então. Havia uma peça de roupa em cada canto da cozinha e confesso que foi estranho arrumar tudo aquilo depois de ele ter me contato que tinha uma garota.

  Estava bem por ter me envolvido fisicamente com alguém de novo e agradecia por não ter sido necessário um envolvimento emocional pra isso. “Eu nunca mais verei o visitante da batatibha”, pensava eu saindo da minha ressaca. Estava enganada – o Gabbe estava nos sofás pretos na madrugada seguinte e em todas que foram se seguindo. Deixou de ser mero visitante.

  Eu estava gostando dessa história de conhecer melhor o menino que fazia música pra nós. Nos tornamos próximos, dávamos risada juntos e íamos descobrindo novos cantos a cada madrugada. Em uma das madrugadas, porém, ele não pôde vir – a garota dele fazia questão de companhia. Os batatibhas diziam que foi a noite em que eu mais fiquei calada. Aquilo não fazia o menor sentido pra mim – apostava ser mera impressão deles. Fui cedo pra casa.

  Acordei pensando no Gabbe. Deve ter sido o momento em que mais senti confusão e raiva de mim mesma. Rasguei minhas próprias mãos em cacos de vidro, imitando uma cena que tinha visto em um filme turco;  mas nada que eu fizesse adiantaria mais. Descobri a verdade: já não pertencia mais a mim mesma e meus pés já não pertenciam mais ao chão.

  Eu sabia que não conseguiria guardar um segredo daquele tamanho. Usei alguma das balinhas da felicidade que o Rique sempre trazia e consegui confessar, gritando a plenos pulmões pra todos naquela sala que eu estava apaixonada. Lá estava eu oferecendo a cara pra ter o ego ferido, mas não foi isso que aconteceu: o Gabbe confessou não sentir diferente.

  Esses atos, viscerais e dramáticos, se tornariam o começo dos dias mais felizes que eu tinha vivido até então. Steven Tyler entenderia o que eu quero dizer quando confesso que tentava não dormir pra não perder tempo de vida com o Gabbe. As anfetaminas me deixavam sempre pronta pra contemplar cada pedaço daquilo que eu acreditava ser meu. Queria estar sempre ali, com o cara que havia trazido vida novamente às minhas horas.

  Quanto mais as madrugadas passavam, mais insuportável ficava pra mim aqueles telefonemas da garota que realmente era dona dele. Lentamente fui deixando de ser aquele alguém por quem o Gabbe tinha se apaixonado – meus discursos filosóficos e animados foram dando lugar a uma extrema cobrança, uma tentativa de posse que aquele blackbird não poderia suportar. Meu medo de perder aquilo que não me pertencia era tão grande que fui esquecendo o bom senso e o equilíbrio emocional.

  Dizem que quando a morte chega, a vida passa em flashes pra cada um. Vi minha vida inteira passando por mim quando o Gabbe finalmente me deixou. Se os batatibhas me contaram direito, foi em uma distração deles que eu fugi para o banheiro pra tomar meia cartela de diazepam com álcool. Não sei bem no que pensei, mas deve ter sido mais um dos meus momentos dramáticos. Provável que eu estivesse tentando imitar a Florbela Espanca.

  Acordei pela primeira vez em uma cama de hospital. Meus pais estavam perto de mim. Minha mãe não conseguia parar de chorar, e o meu pai escondia a preocupação com um olhar que me repreendia. Os batatibhas estavam ali também. A Bel brigava com o Luann, que cria fervorosamente que eu melhoraria depois de fumar um baseado. Nenhum deles entendia que no fundo eu achava glamouroso me matar às vezes pra continuar vivendo.

  A verdade é que eu só queria sair daquela maldita cama logo pra ir pro apartamento do Jota de madrugada. Não sei se eu ainda queria encontrar o Gabbe por lá ou se só queria me matar do jeito certo, dando o tal tiro de hedonismo na cabeça. O Gabbe não estava.