quinta-feira, 8 de outubro de 2009

I - Garrafas, Bitucas e Cacos de Coração

  Nunca tive muita habilidade com isso de viver. É possível que ninguém tenha habilidade com isso, mas eu sempre tive menos que todos. Passei pela adolescência do jeito que os psicanalistas aplaudiriam: questionei tudo e todos, pus em xeque anos de educação. O problema começou depois.

  Eu era uma mistura de dois personagens literários, uma espécie de Dorian Gray com Werther. Cheguei a atirar na minha própria cabeça depois de uma dessas comuns desilusões que se tem com alguém com quem você transa por anos – dizem que a gente sempre muda depois das decepções. O tiro que eu dava na minha própria cabeça era o hedonismo.

  Meus acompanhantes da época me encaravam como a própria inventora dos prazeres. Eu sempre bebia, usava alguma droga e filosofava sobre o amor livre até conseguir levar todos, ao mesmo tempo, pra uma cama pequena de um motel na esquina de uma rua paulista qualquer ou pra um desses bordéis com luzes e sons poluentes.

  No fundo eu estava sempre achando minha vida medíocre. Acabei entrando nessa história de cursar uma faculdade e dormir todo dia em casa, quando na verdade eu só queria estar com uma mochila nas costas experimentando todas as drogas e pessoas de todos os lugares do mundo pelos quais passasse.

  Queria largar a faculdade, mas não tinha coragem o suficiente pra largar essa minha rebeldia sustentada pelo meu pai. Eu era só mais uma dessas adolescentes de classe média que pensam saber alguma coisa, que pensam em fazer revolução sendo incapazes de trabalhar pelos próprios cigarros.

  Na época, eu ainda tinha uma transa fixa com meu ex-namorado, Don. Talvez a transa tenha acabado depois de eu sofrer um aborto espontâneo. Era chocante pra dois jovens. Foi nessa época que ele achou que me faria bem conhecer umas pessoas novas.

 
  No começo de uma dessas estações, o Don me levou no velho apartamento de um amigo, um cara magrelo de personalidade imponente, o chamado Jota. O apartamento era cheio de referências à Islândia e sofás pretos de couro sintético. Os outros que conheci naquela noite eram tão peculiares quanto o anfitrião: Rique, o menino das roupas azuis e risadas convidativas, e Carol, a garota simpática que fez todo o esforço que pôde pra me enturmar de cara. Eles eram, naquela época, o que os beatniks foram nos anos 50: modernos, articulados, hedonistas e presos ao seu próprio mundo como forma de ruptura. Ao grupo se atribuía nomes bem humorados, como batatibhas, que eu nunca deixei de usar.

  Sentei em um desses sofás de couro sintético enquanto todos bebiam, riam e conversavam semi-nus. Fiquei surpreendentemente quieta, só escrevendo umas linhas ou rindo de alguma coisa. Esse pequeno desconforto passou logo que eu descobri que o Jota era fã de Tarkovsky. Deve ter sido nessa hora que me senti em casa. Comecei a oferecer cigarros.

  Passei a ir todos os dias naquele apartamento de encontros falantes, intelectuais e hedonistas. Fui conhecendo uns amigos desses meus neo-beatniks, que foram se tornando tão amigos quanto os primeiros. Conheci o Luann, um menino descarado e divertido, que me chamou atenção de imediato, pouco tempo antes de conhecer a garota à qual ele pertencia – talvez os humanos só se sinta livres quando presos sentimentalmente. A garota era a Bel, a mais equilibrada, com uma beleza tão inquestionável quanto a de uma boneca de porcelana. Formavam um casal tão vistoso que eu não conseguia deixar de tentar satisfazer meu voyeurismo.

  As reuniões se tornavam cada vez mais longas e numerosas. Eu conseguia sempre alcançar o pico que buscava – o Rique nunca contou de onde tirava drogas tão boas. Em cada reunião dessas de sofá as histórias de nossas vidas se misturavam mais. Alguns gostavam de perguntar e me ouvir contar do meu passado de ninfomaníaca:

  - Então quer mesmo que eu acredite que você, que chupava até taxista, cismou de se contentar só com vibrador? – perguntava o Rique.
  -  Eu ando com um certo nojo, é só isso. Não é que eu não goste mais de sexo, é só que ando com aversão às pessoas.

  A verdade é que talvez todo mundo já tivesse percebido que eu não estava mais tão viva. Talvez essa existência oscilando entre prazeres descontrolados e nojo fosse uma forma de tentar sufocar frustrações gerando sempre novas.

  Em um dos dias em que eu cheguei no apartamento depois dos outros, me deparei com todo mundo quase alcançando o pico sem mim. No canto da sala havia um cara que o Luann apresentou como sendo um amigo seu, a “carne nova”, seguindo as palavras dos meus amigos em pré-overdose. Ele, que era chamado de Gabbe, tinha cabelos longos e negros que se misturavam com um lenço que remetia a uma das correntes de rock nos anos 80; tinha uma beleza simples de ser entendida e marcante. Ele cheirava a Lucky Strike, cerveja e solidão.

  Mesmo agora, passado algum tempo, não consigo explicar muito bem tudo o que aconteceu quando conheci o Gabbe. Os sofás pretos, as pessoas jogadas pelo chão, a música alta e todo o resto já não passavam de um adereço ao redor dele, como se cada parágrafo da vida, assim como desse texto, tivessem servido apenas pra culminar naquele momento.

  Conversei com o Gabbe por longas horas naquela noite. À primeira vista, éramos diferentes; com gostos, idéias e vidas diferentes. Em todas as outras vistas também éramos diferentes, mas havia alguma coisa que se assemelhava muito. Não sei bem o que. Continuamos a conversa na cozinha da minha casa. Todos os meus desejos haviam aflorado com aquelas palavras dele e eu senti necessidade de novo de ter algo real e... animal. Dizer que queria algo mais “humano” poderia valer, mas não daria a dimensão do jeito que eu tomei posse dele e do jeito que puxei aqueles cabelos no melhor orgasmo que já tinha experimentado até então. Havia uma peça de roupa em cada canto da cozinha e confesso que foi estranho arrumar tudo aquilo depois de ele ter me contato que tinha uma garota.

  Estava bem por ter me envolvido fisicamente com alguém de novo e agradecia por não ter sido necessário um envolvimento emocional pra isso. “Eu nunca mais verei o visitante da batatibha”, pensava eu saindo da minha ressaca. Estava enganada – o Gabbe estava nos sofás pretos na madrugada seguinte e em todas que foram se seguindo. Deixou de ser mero visitante.

  Eu estava gostando dessa história de conhecer melhor o menino que fazia música pra nós. Nos tornamos próximos, dávamos risada juntos e íamos descobrindo novos cantos a cada madrugada. Em uma das madrugadas, porém, ele não pôde vir – a garota dele fazia questão de companhia. Os batatibhas diziam que foi a noite em que eu mais fiquei calada. Aquilo não fazia o menor sentido pra mim – apostava ser mera impressão deles. Fui cedo pra casa.

  Acordei pensando no Gabbe. Deve ter sido o momento em que mais senti confusão e raiva de mim mesma. Rasguei minhas próprias mãos em cacos de vidro, imitando uma cena que tinha visto em um filme turco;  mas nada que eu fizesse adiantaria mais. Descobri a verdade: já não pertencia mais a mim mesma e meus pés já não pertenciam mais ao chão.

  Eu sabia que não conseguiria guardar um segredo daquele tamanho. Usei alguma das balinhas da felicidade que o Rique sempre trazia e consegui confessar, gritando a plenos pulmões pra todos naquela sala que eu estava apaixonada. Lá estava eu oferecendo a cara pra ter o ego ferido, mas não foi isso que aconteceu: o Gabbe confessou não sentir diferente.

  Esses atos, viscerais e dramáticos, se tornariam o começo dos dias mais felizes que eu tinha vivido até então. Steven Tyler entenderia o que eu quero dizer quando confesso que tentava não dormir pra não perder tempo de vida com o Gabbe. As anfetaminas me deixavam sempre pronta pra contemplar cada pedaço daquilo que eu acreditava ser meu. Queria estar sempre ali, com o cara que havia trazido vida novamente às minhas horas.

  Quanto mais as madrugadas passavam, mais insuportável ficava pra mim aqueles telefonemas da garota que realmente era dona dele. Lentamente fui deixando de ser aquele alguém por quem o Gabbe tinha se apaixonado – meus discursos filosóficos e animados foram dando lugar a uma extrema cobrança, uma tentativa de posse que aquele blackbird não poderia suportar. Meu medo de perder aquilo que não me pertencia era tão grande que fui esquecendo o bom senso e o equilíbrio emocional.

  Dizem que quando a morte chega, a vida passa em flashes pra cada um. Vi minha vida inteira passando por mim quando o Gabbe finalmente me deixou. Se os batatibhas me contaram direito, foi em uma distração deles que eu fugi para o banheiro pra tomar meia cartela de diazepam com álcool. Não sei bem no que pensei, mas deve ter sido mais um dos meus momentos dramáticos. Provável que eu estivesse tentando imitar a Florbela Espanca.

  Acordei pela primeira vez em uma cama de hospital. Meus pais estavam perto de mim. Minha mãe não conseguia parar de chorar, e o meu pai escondia a preocupação com um olhar que me repreendia. Os batatibhas estavam ali também. A Bel brigava com o Luann, que cria fervorosamente que eu melhoraria depois de fumar um baseado. Nenhum deles entendia que no fundo eu achava glamouroso me matar às vezes pra continuar vivendo.

  A verdade é que eu só queria sair daquela maldita cama logo pra ir pro apartamento do Jota de madrugada. Não sei se eu ainda queria encontrar o Gabbe por lá ou se só queria me matar do jeito certo, dando o tal tiro de hedonismo na cabeça. O Gabbe não estava.